Vivemos numa crítica sempre manca, sempre morta a meio do caminho. Não podemos, jamais, criticar os nossos governos sob pena de alimentarmos um inimigo permanentemente no cio, como diria Brecht. Os que ousam fazê-lo são tidos como anacrônicos, teóricos, muito pouco pragmáticos, que pouco ou nada entendem da realpolitik, radicais inflexíveis e inveterados. Curiosamente são estes e estas os acusados de serem perpetradores de expurgos, divisões, sectarismo e fracionalismo. Confesso, Presidente: sou um deles.Votei no senhor em 2022. Votaria novamente. Votaria mil vezes se estivéssemos no cenário eleitoral de 2022. Votaria no senhor em 2002, contra José Serra, e votaria em 2006, contra o seu atual vice, se pudesse votar em ambas. Votei em Dilma em 2010 e 2014. Votei em Haddad no segundo turno em 2018 depois de desperdiçar meu voto de primeiro turno na atroz e infeliz figura política que se tornou Ciro Gomes. Essa trajetória dos meus próprios e individuais votos para o zênite do poder executivo é a demonstração par excellence de que o petismo é o estado da arte da viabilidade eleitoral no Brasil.Entretanto, este último dia sete de setembro, em que pese a idílica diferença frente aos últimos quatro anos – finalmente um civil, o senhor, colocando os militares na posição constitucional que lhes cabe -, é um dia para pouca celebração, posto que vem na esteira da demissão de Ana Moser. Demissão para a escandalosa entrada de André Fufuca (sic), conduzido ao cargo, no colo, por Arthur Lira. Fufuca é cria de Cunha e é um golpista fanático, como o senhor bem sabe. Dirão que o senhor foi extorquido; ou, melhor: “vão-se os anéis e ficam os dedos”. Os mais demagogos dirão que é o custo para alimentar as bocas famintas de um país de volta ao mapa da fome e, pronto, qualquer crítica é interrompida, tornando-se quase criminosa. Devemos crer que há relação entre a troca da pasta do esporte e o programa Brasil Sem Fome, lançado no último dia 31?Seria também condenável – esse oportunismo tacanho do presidente da Câmara -, porém compreensível, se houvesse esse quid pro quo em razão da reversão da privatização da Eletrobras; da reversão da (pseudo)autonomia do Banco Central; da reversão – e extermínio urgente – do teto de gastos. Estas são medidas pelas quais a direita (i)liberal e os seus padrinhos financistas demandariam um substancial pagamento para o exercício da condescendência no Congresso. Mas deixar os anéis pelo arcabouço fiscal de Haddad – que a direita comemora e celebra? Pela indicação e aprovação sem sustos de Zanin ao STF – que fez ribombar de alegria o bolsonarismo? No fim, Presidente, estamos deixando os anéis apenas pela manutenção formal do poder.Não é Lira quem elegeu o Partido dos Trabalhadores, e o Partido dos Trabalhadores sabe bem disso. Foi o povo brasileiro. Gilberto Carvalho sempre relembra das bases e das massas, mas o círculo vicioso do clientelismo mostra que a condução do senhor, Presidente, ameaça um eterno retorno, um devir sem fim, aos seus dois primeiros mandatos. Mudam-se as figuras, os rostos (Toffoli ou Zanin), os títulos dos programas. Muda-se a forma, mantém-se o conteúdo. Repisar os mesmos acertos é sinal de sabedoria, Presidente Lula, e um viva a essa virtude, mas repisar os mesmos erros é esquecer, imperdoavelmente, a sanha golpista latente da direita brasileira. E como diria Victor Hugo: o verão jamais abdica de seus direitos.Depois de dois mandatos de conciliação e governabilidade, a gulosa fatia do Congresso que deve sua fidelidade aos próprios financiadores não hesitou em esquartejar os ganhos sociais que o senhor conduziu entre 2002 e 2010. Pior, articulou bem as palavras enquanto lancinava a carne da democracia com o golpe que também faria ruir as suas próprias bases: fomentou o ódio irracional a um comunismo imaginário, atribuiu ao PT uma – infelizmente inverídica – política de esquerda radical e amamentou a cadela de um inédito fascismo brasileiro.
Juca Kfouri: Carta ao Presidente Lula
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